Aos 91 anos, o padre Blevio Oselame, o monsenhor de São Joaquim, guarda apenas um arrependimento nas mais de seis décadas de sacerdócio: ter saído de casa na manhã de 20 de julho de 1957. Era data da maior nevasca de Santa Catarina, que completa seis décadas neste ano.
Naquele dia, o padre seguiu rumo a três madeireiras incumbido de celebrar mais de 20 batizados e seis casamentos na localidade de Cruzeiros, interior de São Joaquim, na Serra Catarinense.
Às 10h, começaram a cair os primeiros flocos de neve. O jovem padre – que chegara na cidade em janeiro daquele ano – tinha sido alertado das dificuldades que o fenômeno poderia provocar, mas insistiu no dever.
Conseguiu ajuda do motorista de uma serraria, que emprestou o jipe da empresa – um dos raros da cidade naquela época – e conduziu o sacerdote aos compromissos.
Depois de percorrer as madeireiras para celebrar as missas combinadas, o padre decidiu retornar, por volta das 16h. A tempestade não cessava. Era tanta neve já acumulada que a superfície superava o para-choque do jipe. O carro encalhou próximo ao campo de aviação.
A cerca de cinco quilômetros da igreja matriz, Blevio Oselame seguiu a pé, esgueirando-se nos muros de taipa que ladeavam a estrada. O medo do fenômeno desconhecido crescia à medida em que anoitecia.
Era a maior nevasca já registrada em Santa Catarina e a maior do Brasil já fotografada – há apenas registros de 2 metros acumulados em Vacaria (RS) em 1879.
A tempestade só começou a cessar às 22h, com cerca de 1,30 metro de neve acumulada. E o motorista que emprestou o jipe para a viagem do sacerdote foi demitido pelo patrão logo depois pela façanha, mas está eternizado na fotografia com o padre e outros dois homens que ajudaram a desatolar o veículo.
“Jamais poderia ter saído de casa, mesmo de dia, pois não havia ninguém na estrada. Se fosse à noite, não sobreviveria. Como eu era leigo, ignorante das questões da natureza, embarquei nessa fria”, afirma o religioso.
A neve acumulada pôde ser vista nos campos da Serra por até 15 dias. São Joaquim tinha cerca de 10 mil habitantes e todos os acessos ficaram bloqueados por pelo menos uma semana. Havia casas cobertas pelo gelo e árvores quebradas. A ajuda vinha apenas do céu. Aviões da Força Aérea Brasileira decolavam de Curitiba com mantimentos e roupas e despejavam em caixas num campo de futebol da cidade.
“Os galhos dos pinheiros quebravam facilmente com o peso do gelo. Era um perigo até para o gado”, diz Oselame.
A ajuda vinha apenas do céu. Aviões da Força Aérea Brasileira decolavam de Curitiba com mantimentos e roupas e despejavam em caixas num campo de futebol da cidade.
“Até voluntários de Pernambuco se compadeceram com a situação e enviaram donativos”, lembra o padre Oselame. Apesar da intensidade da nevasca, não houve feridos, mas muitos ficaram desabrigados – o peso da neve ruiu telhados – e perderam animais de criação, como galinhas e porcos.
Recordes são raros nas últimas décadas
Outros registros de neve seriam vivenciados no futuro em Santa Catarina. No fim da década de 1970 e início dos ano 1980, além da Serra, era comum Meio-Oeste e Planalto Norte registrarem o fenômeno. Em 12 de julho de 2000, 10 cidades catarinenses situadas entre a Serra e o Oeste tiveram precipitação de flocos.
Em 4 de agosto de 2010, o fenômeno apareceu com intensidade em 14 cidades do Estado, incluindo Orleans e Urussanga que, apesar da proximidade com a Serra – que registrou meio metro de acúmulo de gelo –, estão apenas 132 metros e 49 metros, respectivamente, acima do nível do mar.
Está viva na memória de praticamente todos os catarinenses o amanhecer de 23 de julho de 2013, quando 107 cidades amanheceram, inclusive no litoral catarinense, com os campos esbranquiçados. Ano passado, no domingo 21 de agosto, Urubici, Urupema, São Joaquim e Bom Jardim da Serra tiveram precipitação pela manhã e à tarde. Há duas semanas, as quatro cidades voltaram a registrar o fenômeno.
Mas em nenhum o acúmulo de neve foi o mesmo de 1957. Por que o fenômeno é tão raro? Para a meteorologista Marilene de Lima, da Epagri Ciram, órgão estadual de monitoramento do clima, há duas explicações básicas: é preciso a combinação de diversos fatores meteorológicos e a mudança da configuração das cidades pode ter influenciado.
Primeiro, prever a ocorrência de neve é difícil e só se confirma com exatidão com menos de 24 horas de antecedência. É preciso ter temperaturas próximas ou abaixo de 0°C na superfície e na altitude das nuvens e muita umidade, para gerar a precipitação.
No caso de 1957, tudo aconteceu com muita intensidade. Além disso, as cidades eram predominantemente rurais, com pouco concreto para reter calor. Até mesmo as temperaturas mínimas do inverno não têm sido tão baixas como já foram em décadas passadas.
Conforme dados das estações da Epagri Ciram, os recordes de frio são de 1952 (-14°C em Caçador), 1963 (-12°C, em Canoinhas) e 1945 (-11,6°C, em Xanxerê). O mais recente é de 1991: -10ºC em São Joaquim. Índices que representam o dobro ou o triplo das temperaturas mais baixas registradas nos últimos anos no Estado.
“Sem dúvida há impacto no clima em função da urbanização. E pelo próprio fato desse frio extraordinário, de muito abaixo de 0°C, serem recordes, demonstram a raridade do fenômeno, mais difícil de ser recuperado”, explica Marilene.
O meteorologista Leandro Puchalski, da Central RBS de Meteorologia, confirma que a nevasca de 1957 é uma das maiores que se tem registro no Brasil. Segundo ele, o normal para a nossa região são as ocorrências mais fracas do fenômeno e a neve de 1957 foi fora da curva, fugindo das características de Santa Catarina.
Puchalski explica que existe uma grande quantidade de cenários específicos na atmosfera que propiciam a formação de nuvens de neve. O cenário mais básico é quando há umidade sobre a região, com tempo nublado, e uma massa de ar frio ao mesmo tempo.
“Um dos cenários ocorre quando há um ciclone no oceano, perto da costa, com ventos no sentido horário – o que joga a umidade para serra. Mas esse ciclone tem que estar em uma posição bem específica para chegar na região serrana, onde a altitude é maior. Ao mesmo tempo, deve ocorrer a entrada de uma massa de ar muito frio a partir do Oeste do Estado, pelo norte da Argentina. É essa combinação que gera nuvens associadas à neve. Além disso, as temperaturas têm que estar baixas – de preferência abaixo de zero – em todas as camadas da atmosfera, do topo da nuvem ao solo, para que a neve não derreta antes de chegar ao chão”.
Essa combinação é difícil de ocorrer, já que a massa de ar frio está associada ao tempo seco e costuma empurrar a umidade para o oceano. De acordo com Puchalski, o cenário deve ter sido semelhante a este em 1957, mas com uma intensidade diferente, resultante de muita umidade e uma massa de ar frio estacionária, para que nevasse por tanto tempo na região.
Já em 2013, no último grande registro de neve que tivemos no Estado, ocorreu uma situação menos frequente – a neve que normalmente fica entre a Serra, Planalto Norte e o Oeste caiu entre a região serrana e o litoral.
“Em São Joaquim, por exemplo, o fenômeno teve menos força do que em Rancho Queimado. Isso porque houve uma condição meteorológica bem propícia por conta da intensidade da massa de ar frio, o que não é normal no litoral, já que perto da superfície as temperaturas são mais positivas, combinada com uma frente fria que manteve o ar úmido”.
Com informações do site Diário Catarinense