Até 14 de dezembro deste ano, 54 mulheres foram mortas em Santa Catarina; cientista social e historiadora elencam razões para explicar violência
A região Oeste de Santa Catarina lidera o ranking estadual de feminicídios pelo terceiro ano consecutivo, segundo dados de 2020 a 2022 da SSP/SC (Secretaria de Estado da Segurança Pública de Santa Catarina). O levantamento foi obtido com exclusividade pelo ND+.
Até o dia 14 de dezembro, a região somou 19 dos 54 feminicídios registrados no Estado em 2022, o que representa 35% das mortes motivadas por violência doméstica ou por menosprezo à condição de mulher.
Em 2020, ano em que a pandemia foi deflagrada, 57 mulheres foram mortas por feminicídio, sendo 17 no Oeste. No ano seguinte, foram 55 vítimas no Estado e 16 registros na região. Muitas das cidades onde os crimes foram praticados têm menos de 30 mil habitantes.
O contexto histórico, além dos valores e comportamentos compartilhados em uma comunidade, pode ajudar a explicar por que a violência contra as mulheres é tão recorrente.
A cientista social e doutoranda em Antropologia pela UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), Bruna Fani, pondera que é um problema complexo e não tem apenas um fator agravante. No entanto, ela aponta como a configuração familiar pode influenciar na perpetuação da violência.
“O que se percebe em comunidades do interior é que os valores tendem a ser, muitas vezes, mais conservadores, onde o casamento, a família, o homem e a mulher são o principal modo de existência e composição das famílias”.
“Além disso, há menos possibilidades de existência para as mulheres fora de uma relação, o que pode facilitar a permanência de uma mulher em um relacionamento abusivo”, reflete.
Historiadora da UFSC, Cristina Scheibe Wolff, que atua no laboratório de Estudos de Gênero e História e no Instituto de Estudos de Gênero, afirma que a região Oeste tem histórico de violência por conta da colonização tardia.
“Não que eles sejam extremamente violentos, mais do que outros lugares, mas foi uma região em que a colonização foi mais tarde, já no início do século XX, e tinha uma espécie de imagem do Oeste como um lugar meio ‘sem lei’, em que os homens tinham que desbravar a região. Havia uma ideia meio de ‘velho oeste’, como nos Estados Unidos”, diz.
Veja comparativo por ano e região
2020
Oeste: 17 feminicídios
Vale do Itajaí: 15 feminicídios
Norte: 8 feminicídios
Sul: 7 feminicídios
Grande Florianópolis: 6 feminicídios
Serra: 4 feminicídios
2021
Oeste: 16 feminicídios
Grande Florianópolis: 11 feminicídios
Norte: 11 feminicídios
Vale do Itajaí: 9 feminicídios
Serra: 5 feminicídios
Sul: 3 feminicídios
2022 (até 14 de dezembro)
Oeste: 19 feminicídios
Vale do Itajaí: 11 feminicídios
Norte: 11 feminicídios
Sul: 5 feminicídios
Grande Florianópolis: 5 feminicídios
Serra: 3 feminicídios
Cultura e masculinidade violentas
A cultura da violência era algo comum no Brasil e especialmente no Oeste catarinense ao longo do século XIX e início do século XX, quando os homens andavam armados para se proteger, detalha a historiadora.
“A região Meio-Oeste teve toda a Guerra do Contestado, teve Revolução Federalista, havia conflitos com a Argentina na fronteira. Então os coronéis, os fazendeiros da região, costumavam ter jagunços armados para proteção, até porque o Estado brasileiro vai se instituir na região depois da década de 1920.”
Assim, antes desse período, a região era pouco habitada, além de ter pouca estrutura. “Muito longínqua de tudo o que seria considerado na época como civilização.”
As empresas colonizadoras criaram as cidades na região Oeste com uma cultura de masculinidade violenta, “baseada na ideia de que o homem deveria ser aquela pessoa que pode exercer a violência, principalmente em caso em que está em jogo a sua honra”, explica Wolff.
A ideia de defesa da honra perpassa toda a história ocidental e vai também deixar um legado cultural no Oeste catarinense.
“Talvez, a criação de um Estado mais atuante e não tão coronelista ter acontecido mais tardiamente no Oeste, a questão da violência circule um pouco mais forte lá do que em outras regiões do Estado”, comenta.
Desafiar o poder
Os valores machistas e patriarcais de que “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher” fazem muitas mulheres não conseguirem sair de relacionamentos abusivos, diz a cientista social Bruna Fani. “Sabemos, afinal, que a maior parte dos casos de feminicídio se dão dentro de relacionamentos.”
A visão de que ninguém pode interferir em casos de brigas conjugais porque a mulher “fez algo para merecer” naturaliza a violência, o que é muito forte nessas cidades pequenas, diz Wolff.
“Essa cultura local ajuda a pensar essa questão da violência como parte da sociedade.”
O “lugar de poder” que o homem alcançou na sociedade também pode explicar o índice de feminicídios. A pesquisadora afirma que, quando as mulheres escapam do controle dos companheiros, seja ao sair de casa ou buscar trabalhos, ou outras relações amorosas, existe uma revolta por questionar a autoridade masculina.
“Elas estão tentando se desvencilhar desses laços que as amarram dentro de relações extremamente violentas, que tolhem a iniciativa delas. Quando elas tentam sair, esses homens as matam porque entendem que elas estão de alguma forma atingindo o lugar deles na sociedade, que seria um lugar de poder, de mando.”
Um exemplo recente é o caso de Jaqueline Beatriz da Rosa, 28 anos, morta pelo ex-namorado em Chapecó no último 21 de dezembro. O agressor, de 34 anos, não aceitava o fim do relacionamento.
Uma testemunha disse à polícia que ouviu uma discussão entre a vítima e o assassino antes de escutar os cinco disparos. Jaqueline havia contado que teria terminado com o ex há oito meses. Ele a matou e, em seguida, cometeu suicídio.
Com informações do ND+