A auto-inseminação caseira teria acontecido por meio da inserção do sêmen de um doador anônimo e obteve êxito na segunda tentativa, de modo que uma delas gerava um bebê com seis meses de gestação
A juíza Elaine Cristina de Souza Freitas, titular da 1ª Vara Cível da comarca de Laguna, julgou procedente ação para registro de nascimento de criança com dupla maternidade ainda que a gestação tenha sido resultado de auto-inseminação caseira. Segundo os autos, as autoras possuem união estável e compartilhavam do desejo de se tornarem mães, mas não tinham condições de realizar um procedimento de inseminação artificial. Porém, uma vez que o procedimento realizado foi caseiro, e portanto, não revestido das formalidades legais e médicas de uma inseminação assistida, as autoras não possuíam declaração de médico responsável para registro e emissão da certidão de nascimento.
A auto-inseminação caseira teria acontecido por meio da inserção do sêmen de um doador anônimo e obteve êxito na segunda tentativa, de modo que uma delas gerava um bebê com seis meses de gestação. Como geneticamente não havia parentesco com a outra requerente, isso lhe impediria, num primeiro momento, de registrar a criança como sua filha.
Em sua decisão, a magistrada ressaltou inicialmente que a família é tomada como base da sociedade, com direito a proteção do Estado, o que ocorre tanto quando do casamento, quanto da união estável. Ela cita a Constituição Federal, que preceitua que “o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas”.
A sentença também detalha que o Conselho Nacional de Justiça, ao editar o Provimento n. 63/2017, regulamentou o registro de nascimento e emissão da respectiva certidão dos filhos havidos por reprodução assistida, porém com a indispensável apresentação de ‘declaração, com firma reconhecida, do diretor técnico da clínica, centro ou serviço de reprodução humana em que foi realizada a reprodução assistida, indicando que a criança foi gerada por reprodução assistida heteróloga, assim como o nome dos beneficiários’.
Como no caso em análise o referido documento inexistia, a magistrada entendeu haver uma lacuna do provimento na medida em que “este não prevê o procedimento a ser adotado em casos semelhantes ao aqui tratado, cabendo, portanto, ao judiciário, mediante acionamento, utilizar dos métodos integrativos disponíveis no direito para chegar à solução do conflito”.
Por outro lado, de acordo com a sentença, sob a ótica do nascituro envolvido, é importante destacar que este tem direito fundamental à identidade, consolidado na Declaração dos Direitos da Criança e na Constituição. “Além disso, pode-se ponderar que é do melhor interesse do nascituro ter sua ascendência registrada com o nome do casal requerente, visto que lhe proverá os cuidados necessários e lhe proverá afeto como genitores(as), independentemente do vínculo genético.” Nesse sentido, citou o Código Civil, que resguarda os direitos dos nascituros: “Art. 2º A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”.
A magistrada conclui que “não cabe ao Estado interferir no planejamento familiar, mas sim protegê-lo”. Outrossim, na medida em que se reconhece legalmente o vínculo de ascendência no caso de inseminação artificial heteróloga, não há porque não reconhecê-lo no presente caso, por se tratar de situação bastante semelhante, a qual não preenche tão-somente o requisito de acompanhamento/documentação médica.
A juíza ressaltou que quanto ao doador do material genético “restou esclarecido pelas autoras, em audiência realizada, que se trata de pessoa anônima residente em outro Estado e que teve plena ciência e anuência com o procedimento. Ademais, destaca-se que eventual direito à busca pelo ascendente biológico ou pela criança acerca da sua origem genética não será obstado, motivo pelo qual o deferimento da presente não causará nenhum prejuízo a estes.”
Desta forma, e em analogia aos arts. 16 e 17 do Provimento n. 63 do CNJ, a magistrada julgou procedente o pedido formulado para autorizar o registro do nascituro, com as partes como ascendentes, independentemente da apresentação da documentação exigida, com a determinação ao Cartório de Registro Civil de constar os nomes dos ascendentes, sem referência a distinção quanto à ascendência paterna ou materna. O processo tramitou em segredo de justiça.