Em 2014 a polícia recebeu 356 chamados denunciando a ação, contra 217 neste ano
O cerco a uma das mais antigas tradições culturais açorianas em Santa Catarinase intensifica a cada Quaresma, diminuindo o prestígio do evento frente à população e, consequentemente, o número de pessoas detidas e bois apreendidos.
Se em 2014 a polícia recebeu 356 chamados denunciando a ação com os animais, este ano foram 217. Ativistas e especialistas concordam que o aspecto negativo conferido à prática por grande parte da população e pelo rubor de maus tratos aos animaisdesempenham papel tão importante quanto a fiscalização que foi intensificadadurante a Páscoa, assim como ações preventivas e educativas nas escolas.
Dados da Polícia Militar mostram que apenas seis pessoas foram presas em 2015 — há três anos, foram 53. Informações repassadas ao DC em 2006 mostram que, naquele ano, a PM registrou 290 ocorrências, quase sete vezes mais que em 2015, quando até dia 13 de abril foram 42. A farra do boi é proibida desde 1997, quando o Supremo Tribunal Federal a julgou cruel com os animais e inconstitucional.
A prática, entretanto, não se encerrou com a decisão federal. Sete anos depois, em 2004, duas pessoas morreram em circunstâncias diferentes ligadas à farra: um rapaz de 17 anos que levou uma chifrada no pescoço ao tentar socorrer um farrista, em Itapema, e um bebê de dois meses, morto em um acidente após o carro em que estava colidir com um boi que fugia, em Governador Celso Ramos.
A rapidez com que os eventos são desmontados e os mangueirões cada vez mais afastados, entretanto, dificultam os flagrantes e frustram a precisão dos cálculos. O número de chamadas de emergência relatando farras do boi, por exemplo, manteve-se sem grandes alterações na última década.
Para a PM, isso demonstra mais disposição da população em denunciar — afinal, nem todos os eventos geram denúncias, e nem todos as denúncias viram ocorrências policiais. Uma mesma farra pode acarretar em diversas ligações para a PM; outra, em nenhuma.
Números são comemorados
Quem é contrário enxerga a diminuição e comemora o resultado. Halem Guerra Nery, do Instituto Ambiental Ecosul, acompanha a prática há 34 anos e está certo de que as ações educacionais são a melhor ferramenta para criar uma geração de crianças contrárias à violência contra animais. "Farra do Boi se combate quando ela não está acontecendo, com muito esforço e diálogo com as crianças e os jovens", comenta Nery.
Prática chegou a Santa Catarina há dois séculos
A farra do boi chegou ao Litoral de Santa Catarina há 262 anos, com os açorianos. A tradição é proibida desde 1997 por decisão do Supremo Tribunal Federal – STF por ser considerada um crime de maus tratos aos animais. A ação é prevista na Lei Federal 9.605/98 que determina pena de três meses a um ano de detenção, sendo aumentada em um terço nos casos de morte do boi.
Em 2007, o município de Governador Celso Ramos tentou regularizar a prática por se tratar de um "patrimônio cultural", mas o Tribunal de Justiça suspendeu a aplicação da lei municipal por considerar que poderia "resultar em efetiva violência contra os animais".
Farristas atribuem queda à falta de interesse
Os próprios farristas percebem a diminuição da prática. No bairro Ingleses, no Norte da Ilha, onde na semana passada a reportagem localizou um mangueirão utilizado durante a Quaresma deste ano, pescadores admitem a realização da farra e lamentam que ela tenha deixado a esfera cultural e passado para a criminal, afastando até entusiastas mais antigos.
As razões apontadas por eles são muitas: falta de interesse dos jovens, dificuldade em transportar os animais até o local, o crescimento acelerado das comunidades tradicionais e a repressão policial intensificada na época da Quaresma. Para os nativos, o fim da farra teria o mesmo peso que o desinteresse da cidade por outras tradições, como o Terno de Reis ou a pescaria artesanal da tainha.
"Quando tinha 15 anos, passava quinta, sexta e sábado na farra. É uma coisa que está se acabando depressa. Hoje há muita gente na rua nos feriados, assaltos, violência, bêbados que ficam incomodando e atrapalham a festa", relata um pescador que nasceu e morou na região a vida toda.
"Deveria ser construído um grande mangueirão público, aí a situação ficava mais controlada", complementa outro pescador, que ressalta ser contrário a farristas que "largam" os bois na rua ou na praia.
"A repressão ajudou a baixar", diz Joi Cletison, diretor do Núcleo de Estudos Açorianos
Para o historiador da UFSC, a brincadeira com boi é uma tradição e deve ser preservada, mas ele ressalta que da forma como vem sendo feita atualmente infringe as leis e maltrata os animais. A solução seria criar regras rígidas.
Por que a farra do boi está diminuindo em SC?
A polícia está reprimindo e isso com certeza diminui os casos. Também é uma coisa cíclica, há anos que baixa [o número de casos] e anos que sobe, mas com certeza a repressão contribuiu para diminuir isso.
Mas a farra faz parte da identidade cultural de SC?
Essa cultura de brincar com boi, principalmente com touro, veio dos Açores, lá é muito forte. Mas não o que está aí, que a imprensa paulista e carioca rotulou de farra do boi. Hoje com certeza está infringindo a lei, há maus tratos aos animais, e está infringindo a propriedade privada.Antigamente soltava-se o boi e ele brincava por no máximo duas horas e estava encerrada a brincadeira. Hoje em dia tem lugares que o boi é solto de manhã e no fim da tarde as pessoas estão correndo atrás, e às vezes de moto e de carro, então é uma coisa desumana do jeito que está. Tem que regulamentar, porque enquanto estiver na clandestinidade, sempre irá ocorrer essas manifestações. O poder público poderia rever a decisão e estabelecer regras claras para não acabar com a tradição e proteger o animal.
Quais seriam os tipos de regras?
Nos Açores, tem veterinários, policiais à disposição, 30 minutos para cada touro e eles são criados para isso. São animais bravios, porque a brincadeira tem graça quando investe contra as pessoas. O animal que está lá no pasto, ele não vai investir. Lá é chamado de Tourada da Corda e tem regras rígidas e hoje é um dos maiores atrativos turísticos e culturais dos Açores. A gente adaptou essas regras para cá, em um projeto de lei em Governador Celso Ramos em 2002. Poderia ser a solução para essa polêmica, mas uma semana antes de entrar no período da brincadeira [Quarema], uma juíza de Biguaçu decidiu que a lei era inconstitucional. Chegamos a um ponto que se o Ministério Público não partir para uma regulamentação, nós estaremos falando disso daqui a 20 anos. Talvez a incidência seja um pouco menor, mas estará acontecendo. Eu já tive oportunidade de ver centenas de brincadeiras e a gente vê de senhores de 80 anos a crianças de três anos. É uma tradição que foi passada de pai para filho e não vai acabar por decreto ou por uma Lei.
Quando essa manifestação chegou a Santa Catarina?
Desde que os açorianos chegaram aqui, há 262 anos. Mas do jeito que está, não é tradição. Hoje os bois são alugados. Ela acontece mais forte em Barra do Sul, Barra Velha, Navegantes, Penha, Camboriú, Itapema, Bombinhas, Porto Belo, Governador Celso Ramos, Florianópolis, Palhoça, Garopaba, Imbituba e Paulo Lopes.
Outras polêmicas envolvendo animais
Puxada de cavalo
Competição em que os animais são submetidos ao arrasto de cargas de até duas toneladas sobre um arado por 10 metros em uma pista de terra.
O Projeto de Lei 0117.2/11 que proíbe a realização de puxadas de cavalos em Santa Catarina, de autoria da deputada estadual Ana Paula (PT), está em tramitação na Assembleia Legislativa de SC. Há leis municipais que proíbem a prática em cidades como Massaranduba, Timbó e Blumenau, no Vale do Itajaí.
Animação em circo
O projeto de lei 7291/2006 do senador Álvaro Dias (PSDB/PR) que pretende acabar com a participação de animais da fauna silvestre brasileira e exóticos (importados) em circos no Brasil aguarda para entrar na pauta de votação na Câmara dos Deputados. Em Santa Catarina, cidades como Florianópolis, Blumenau, Itajaí e Jaraguá do Sul já proibiram o uso de animais em circos. Na Capital, a Lei Complementar 183/2005 proíbe a expediçãos de licenças e/ou alvarás, nos limites do município de Florianópolis, para funcionamento de espetáculos que utilizem, sob qualquer forma, animais selvagens, domésticos, nativos ou exóticos sob pena de cancelamento da licença.
Rodeios
Prática não é proibida em Santa Catarina, porém Halem Guerra Nery, do Instituto Ambiental Ecosul, lembra que algumas cidades de São Paulo, por exemplo, já proibiram a realização dos eventos. No Estado, ele cita duas liminares concedidas proibindo a tortura e maus tratos a animais durante rodeios. Uma delas foi concedida em 2003, proibindo o uso de apetrechos como esporas e cordas americanas, no Rodeio de Integração, em Ingleses, em Florianópolis.
Com informações do site Diário Catarinense
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